Alcides Costa
Gosto muito de assistir as sessões do STF, pela televisão, principalmente quando estão relacionadas com questões candentes da política brasileira. A política, na sua acepção mais pura e menos emporcalhada, sempre foi objeto de meu interesse; desde os verdes anos do colégio e Universidade.
Ontem tive oportunidade de assistir boa parte do julgamento quanto à concessão ou não do Habeas Corpus do Lula. Creio que assisti até o placar de 5x2 ou 5x3, quando, visitado por Morfeu, não resisti aos seus apelos, e caí no sono. Mas deu para assistir, dentre outros, ao tão esperado voto da Ministra Rosa Weber, cercado de tantas expectativas, e também ao voto, que reputo histórico e memorável de Sua Excelência o Ministro Barroso.
Vários lances deste julgamento me chamaram profundamente a atenção. Como citei, o voto do Ministro Barroso foi um deles, e certamente o principal. E por que? Porque no decorrer do seu voto, o Ministro, com clareza insuperável, descreveu de forma resumida e extremamente didática, o pano de fundo a partir do qual (e contra o qual) o seu voto se originava e direcionava. Vale dizer, o Ministro descreveu o esquema criminoso, praticamente institucionalizado, envolvendo agentes públicos, políticos relevantes (palavra usada por ele, no sentido de destaque no quadro da política nacional, e não no sentido de mérito; muito ao contrário), e agentes do mundo empresarial, que foi estruturado há décadas, para roubar o Estado brasileiro, ou seja, roubar dinheiro público, roubar os recursos financeiros do tesouro nacional, roubar o dinheiro proveniente dos impostos pagos com o s uor do trabalhador brasileiro.
Não é coisa do governo A ou B, é de todos eles. Isso está consolidado há muitos e muitos anos no Brasil!
A ponto de ter quem ache que isso é normal, porque nasceu e cresceu dentro dessa realidade, então acha que é para ser assim mesmo! (Observações minhas, não do Ministro).
O didatismo do ilustre Ministro chegou mesmo a descrever o “modus operandi” dessas organizações criminosas. Digo organizações porque são muitas, imagino, pequenas, médias e grandes; municipais, estaduais, federais; envolvendo comércio, indústria, serviços, agronegócio, etc. E qual esse “modus operandi”? Vamos a ele, de uma forma bem simplificada:
Os “políticos relevantes” colocam em postos importantes das instituições públicas os seus “homens de confiança”; estes providenciam, em combinação com as empresas escolhidas, as fraudes nas licitações, leia-se superfaturamento. Esse sobrepreço, esse preço aviltado para cima, gerará o dinheiro espúrio, que voltará para os políticos, para os seus partidos e para os agentes públicos, nesse círculo vicioso imoral, criminoso e assassino.
Precisa ser mais claro? Dá para a justiça brasileira tomar qualquer decisão relevante ignorando essa trágica realidade do nosso país? Não é este o principal problema da nação?
Por isso admirei profundamente a exposição do Ministro Barroso, porque nunca vi um integrante do STF, desvelar, de forma tão clara, e sem palavreado jurídico, o que reputo a matriz maior e fundamental de todas as mazelas que assolam o povo brasileiro! Sim porque é esse circulo vicioso infernal, que vem provocando a degradação da qualidade de vida do nosso povo, a degradação dos serviços básicos imprescindíveis à uma sociedade que se pretenda minimamente civilizada.
É esse dinheiro, que vai para os bolsos e caixas dos atores dessa tragédia, que deixa a polícia desaparelhada, o hospital sem condições, a escola e os professores sem possibilidade de cumprirem com sua sagrada missão, o país sem condições de investir em infraestrutura e tantos outros males que fazem o Brasil despencar em termos de indicadores de desenvolvimento e qualidade de vida no concerto das nações.
Mas me chamou também a atenção o voto do Ministro Levandowsky. Nele, sua Excelência demonstrou preocupação com o que denominou de grave momento por que atravessava o Supremo, referindo-se à questão da concordância da maioria, já delineada, com a manutenção da possibilidade de prisão após a segunda instância; na verdade este o fulcro da questão, que divide o Tribunal, e que foi trazida à tona em virtude do processo do Lula.
O Ministro discorreu sobre o valor da liberdade, bem maior do ser humano, comparando-a à própria vida. Disse ele, acertadamente, que uma vez perdida a liberdade, com a prisão, não há como devolvê-la depois, ao se verificar por exemplo que a prisão foi equivocada. Assim como a vida que ao ser perdida não pode ser mais retornada.
O Ministro demonstrava estar muito preocupado com o fato de a manutenção da possibilidade de prisão após a segunda instância trazer prejuízo irreversível a possíveis inocentes condenados por erro jurídico. Pelo menos foi isso que entendi. E entendendo assim, fiquei bastante admirado, com essa preocupação do juiz. Valorizar essa possibilidade de erro a ponto de justificar a negação da prisão após segunda instância, ignorando todo o manancial de beneficios que este dispositivo legal trouxe, me surpreendeu muito, Se não fosse esse dispositivo, a Lava Jato, que representa integralmente o combate concreto ao esquema imoral e criminoso consolidado no país, não teria chegado nem perto dos resultados que alcançou.
Foi esse medo, de ser preso após a segunda instância, que fez com que integrantes desse esquema aceitassem a delação premiada e “abrissem o bico” revelando as entranhas do esquema e possibilitando cada vez mais novos canais de investigação. Isso outros juízes falaram, como falaram também que na grande maioria dos países democráticos é adotada essa medida como praxe. Outro argumento fortíssimo falado pelo Ministro Barroso e outros é a infindável sucessão de recursos aos condenados que a justiça brasileira permite, e que faz com que criminosos condenados fiquem cinco, dez, quinze anos em liberdade, no “bem bom”, enquanto em muitos casos suas vítimas e/ou familiares e amigos ficam sofrendo tanto pelo efeito direto do ato criminoso quanto pela constatação de que o seu autor continua impune. Com a prisão e m segunda instância essa artimanha não é mais possível.
Realmente estranhei essa posição do Ministro de tão arraigado amor à garantia de liberdade, cujo valor não se discute, de supostos e potenciais condenados inocentes, no contexto atual do Brasil em que não só liberdade como tantas vidas são tiradas pelo referido círculo vicioso do mal.
Alcides Costa (alcidescostam@bol.com.br)