Manaus, 24 de Abril de 2024

Encontro marcante

Por: Carlos Santiago
24/12/2019 - 06:25

Recordar é viver


Por Carlos Santiago*
 
            Aquela borboleta me trouxe lembranças. Pouso leve, flores beijadas, plantas fecundadas e a minha mente estacionada na década de 90: um momento, um sentimento, um desejo, uma saudade, um amor juvenil que aconteceu numa etapa de muito idealismo, fraternidade, de busca de conhecimento e de autoconhecimento. Um episódio complexo e lírico, espiritual e material. A imagem: uma moça linda que lia com ternura a bíblia para um comunista. 
 
            Ela tinha 17 anos de idade e era religiosa desde criança. Alta, cor de canela, lábios fartos, sorriso de mulher satisfeita e cabelos negros encaracolados. Era geniosa quando debatia ideias sobre a vida e tinha um coração apaixonado que lhe fazia derramar lágrimas dos olhos quando falava de amor. 
    
          Eu, já estava com 25 anos de idade, tinha o ideário marxista como crença, uma utopia de mundo e de vida. Parte do rosto já engolido pelas acnes, professor de história num distante bairro da cidade de Manaus e amante da literatura de Lima Barreto e de Clarice Lispector, das poesias críticas de Ferreira Gular e amorosas de Vinicius de Moraes. 
 
            Fomos apresentados numa reunião de famílias. Logo que a avistei sentir vergonha, medo e até um mal-estar bobo.  É difícil não sentir nada perto de uma mulher tão bela e inteligente. Conversamos horas sobre assuntos envolvendo o Céu e a Terra, o deserto e o mar. 
 
            Até a metamorfose da borboleta foi abordada. Asas coloridas, fecundar para reproduzir vidas. Antes, sua condição de larva, de ser rastejante e devorador de vidas, uma lagarta.  E, enfim, sua plenitude: uma linda borboleta. Uma lagarta guarda dentro de si uma borboleta, e esta aquela. Uma mutação, uma evolução, uma completude, um espetáculo genial da natureza.     
 
        E num ato de muita coragem a pedi em namoro, surpreendentemente, ela aceitou. Não tínhamos nada em comum. Nem a idade, nem a religião, nem a cor, nem a beleza e nem as leituras. Mas adorávamos ficar juntos: quando aconteciam os beijos escondidos e quando ela lia a Bíblia pra mim.  
 
         Com ela aprendi sobre Jesus Cristo. O filho de um carpinteiro que defendia a comunhão entre os homens e também a luta dos seus seguidores para criar um mundo fraterno. Citava as bênçãos de Cristo aos humildes na forma de bem-aventuranças: bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados; bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia; bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.
 
             A utopia de um mundo celestial onde todo ser humano é feliz, lembrava a sociedade idealizada por Karl Marx: uma sociedade sem injustiça, sem exploração, sem preconceitos, sem forme e miséria, um mundo de comunhão e com trabalho criativo.   
 
          Depois de anos, o namoro acabou e seguimos caminhos diferentes. Há acerca de 12 meses, por acaso, nos reencontramos depois de 26 anos, num fórum de justiça, em Manaus. Ela, sorridente, me cumprimentou com um abraço carinhoso e, dias depois, me enviou uma poesia linda de agradecimento pelas emoções vividas e por nossas longas conversas sobre o cristianismo e comunismo. 
 
           Hoje fico pensando: quem disse que a vida não pode ser um encontro bonito e marcante de pessoas tão diferentes?
 
 
* Sociólogo, Analista Político e Advogado.
 
 
 
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